segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Meninos da rua...

Terminei a leitura d'Os Meninos da Rua Paulo, de Férenc Molnar, clássico húngaro do começo do século XX (ou final do século XIX, não sei precisar e estou com preguiça de googlear e além do que: tanto faz!). Fato é que trata-se de um belo livro, originalmente escrito com intenção de literatura juvenil, mas que acabou se tornando clássico universal. Livro de leitura fácil e rápida, linguagem simples e direta, ainda que a tradução do (também) húngaro Paulo Rónai teime em criar um português razoavelmente peculiar (e gramaticalmente corretíssimo).

O livro me lembrou Londres, onde nunca estive pessoalmente, mas que na década de 60 tenho visitado com meus ouvidos já faz tanto tempo... Enquanto os meninos da rua Paulo lutam para manter seu grund, seu quartel-general, seu campo de "pela", seu espaço!, enfim; os meninos de Londres lutavam para conquistar o seu próprio espaço. Essas ruas, Londres e a rua Paulo em Budapeste, pouco são paralelas, diga-se. Talvez seja só na minha cabeça que elas assim o sejam, e ainda assim se cruzam, geometria não-euclidiana unindo literatura e rock'n'roll, bretões e magiares, pré-(primeira)guerra e pós-(segunda)guerra...

Com o quarteto de Liverpool tendo conquistado a Eurpoa a partir do desembarque em Hamburgo e, posteriormente, a América, algo que nem o bigodinho austríaco, nem o bigodão russo jamais sonharam, a porteira do mundo se abriu para os ingleses. Meu irmão diz que na cabeça dos garotos de Londres (que formariam os Stones, Who entre outros) a idéia era... "se esses caipiras (de Liverpool) podem, a gente também pode". E deve. Como uma gangue, ou várias gangues, os músicos que curtiam rock, blues e gêneros afins ajudaram os Beatles a invadir a América e conquistar o mundo.

A partir de três núcleos principais, os Stones, os Yardbirds e os Bluesbreakers de John Mayall, uns 80% do rock inglês da década de 60 se desenvolveu (deixo aí uns imprecisos 20%, me perdoem os fãs dos Animals, the Who e outros tantos...). O elemento central na movimentação da gangue londrina de rock'n'roll nos anos 60 foi Eric Clapton. Ao trocar os Yardbirds que estavam se tornando, na sua ótica, muito "comerciais" pela banda de John Mayall, houve uma intensa movimentação de personagens nessas gangues.

Clapton na época do Cream

Como n'Os Meninos da Rua Paulo, aqui eles criam sua própria história e suas próprias referências. Seu grund é fruto da vivência em grupo, um mistura de elementos que provém de seu mundo de meninos, mais do que da influência do mundo dos adultos, da escola ou da cultura acadêmica vigente. No caso dos meninos de Londres é fácil imaginar, a Europa esfacelada pela guerra, algumas crianças sem referências paternas (Lennon e Clapton por exemplo) ou maternas (Hendrix): a referência vinha de lá do atlântico, Elvis rebolando, a saga de Johnny Be Good e Muddy Waters destilando o blues...

Quando Clapton deixou os Yardbirds (em 65) ele já tinha status de deus da guitarra, isso com 20(!) anos, e a gangue tinha que se recompor, entrando em cena Jeff Beck, que embora não tenha alcançado o status de divindade de seu antecessor é um guitarrista com a mesma sensibilidade e talvez até mais criatividade (se é que isso possa ser mensurado...) que aquele. Enquanto isso, E.C. não duraria mais que as sessões de gravação de um único disco com os Bluesbreakers, juntando-se a Jack Bruce e Ginger Baker para formar uma das melhores, mais inventivas e influentes bandas dos sixties: o Cream.

Yardbirds: Da esquerda pra direita, Jeff Beck é o primeiro e Jimmy Page o penúltimo.

Jonh Mayall, que era um músico de uma década anterior aos meninos da rua rock, de repente ficou na mão, justo quando tinha entrado no jogo, ou melhor na gangue... Enquanto E.C. tentava se encontrar, Mayall chamou outro menino prodígio, Peter Green, que acabou também ficando somente um disco e quando saiu da banda fez pior: levou junto o baixista e o batera para formar o Peter Green's Fleetwood Mac... Mais uma vez na mão e desta vez trotalmente só, John foi obrigado a reformular a banda e chamou o garoto Mick Taylor para a guitarra.

Mick Taylor (esquerda) no backstage do aniversário de 70 anos de John Mayall (direita).

Do outro lado da rua, uma banda chamada Small Faces começava a chamar a atenção. Já era a segunda leva de bandas inglesas e não era mais assim tão fácil conquistar a América que começava a criar seu próprios heróis. Os carinhas dessa gangue liderados pelo cantor e guitarrista Steve Marriott se deram bem entre os ingleses, principalmente na era da psicodelia, quando lançaram sua obra-prima Ogden's Nut Gone Flake. Enquanto isso, Beck saía dos Yardbirds para montar o Jeff Beck Group com os desconhecidos Rod Stewart (vocal) e Ron Wood (baixo), e Brian Jones estava prester a ser demitido dos Stones por abuso de drogas: como na rua Paulo, os meninos de Londres tinham suas próprias regras e isso incluía punições a sócios que pisassem na bola chegando até a expulsões...

A saída de Jeff Beck desmontou os Yardbirds, mesmo que eles ainda contassem com outro guitarrista prodígio, o menino Jimmy Page, que tentou criar uma nova versão da banda, chamando o cantor e guitarrista Terry Reid para formar os New Yardbirds, convite este que foi recusado, o que poderia ser uma tragédia (pois Terry era muito bom). Mas como nos bons romances, as piores situações originam as mais engenhosas soluções e isso obrigou Jimmy a abandonar esta idéia e abraçar um novo projeto, o Led Zeppelin. O Group de Jeff Beck não durou muito e enquanto Steve Marriott deixava os Small Faces para formar com o garoto Peter Frampton a gangue chamada Humble Pie, os membros restantes chamaram Rod Stewart e Ron Wood (que assumiu a guitarra!) pra fazer o seu papel na banda que foi rebatizada simplesmente como Faces.

Ron Wood e Rod Stewart: The Faces.

Com a demissão do sócio-fundador Brian, os Stones tentaram entrar na onda do guitar rock, numa época em que solos mirabolantes e lendas vivas da guitarra davam as cartas, sem abandonar totalmente suas raízes, chamando o tímido Mick Taylor pra seu lugar (que não seria capaz de ofuscar, pessoalmente, ainda que musicalmente poderia, Keith Richards), deixando, mais uma vez, John Mayall na mão (o que não era um problema para este músico que aprendeu a se reinventar, jamais foi mainstream, e se aproveitou do fato de ser meio cult já nos anos 60...).

Os Meninos da Rua Paulo poderia terminar no seu ponto culminante, com a vitória sobre os camisas vermelhas mas "a vida é real de viés" e toda batalha tem seus heróis de guerra, alguns deles mortos em combate. Boka, Kólnay, Csonakós, Géreb. Jagger, Richards, Clapton, Page, Beck... Os meninos sobreviventes prestam homenagem aos seus heróis: Brian Jones e Jimi Hendrix. Como Géreb que motivado por um crise de ciúmes pela liderança crescente de Boka, torna-se traidor de sua gangue e informante dos camisas vermelhas, Brian Jones não suporta a badalação em torno da dupla Jagger e Richards, trocando a gangue pelas drogas. Como Nemecsék, o único soldado raso de um exército formado exclusivamente por capitães e generais, Hendrix desembarca da América pronto para reconquistar seu país (que o exilou) a partir da gangue de Londres. Os dois conquistam seu lugar na história a partir de sua bravura e seu talento. Os dois caem heroicamente em combate no melhor exemplo de dedicação às gangues das quais faziam parte...

E as histórias dos meninos das ruas Paulo, dos meninos de Londres, teimam em se repetir. De maneira universal. E de maneira única.

[M]


ps: no caso dos meninos de Londres, um capítulo extra. Meados da década de 70, Mick Taylor (ex John Mayall) deixa os Stones e no seu lugar entre Ronnie Wood (Ex-Faces e Jeff Beck Group, portanto com um pitadinha dos Small de Steve Marriott e dos Yardbirds de Beck, Clapton e Page...), unindo a trajetórias de todas essas gangues...

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Cordas, caixas e bobinas: som

Desde a invenção dos primeiros instrumentos a que se costumou chamar guitarra, num longínquo século XVI, uma das maiores preocupações dos artesãos que construíam estes instrumentos era amplificar o som. Os instrumentos de cordas produzem sons devido à vibração destas, e uma corda vibrando costuma produzir um som de pequeno volume, ao contrário por exemplo de uma membrana (de um tambor) vibrando. Desta forma, a música que vem de um intrumento de corda é melhor ouvida se este intrumento dispõe de algum dispositivo para amplificar o som produzido pela sua vibração.

Nada mais simples que imitar a natureza, se a voz humana, produto das vibrações das cordas vocais, pode ser ouvida graças à amplificação produzida pela caixa torácica, a guitarra dos séculos XVI e XVII acoplava ao conjunto de cordas uma caixa de ressonância que tinha exatamente este objetivo. E esta invenção, cordas e caixa de ressonância persiste no que chamamos de violão até hoje. Antonio de Torres, um sevilhano do início do Século XIX estabeleceu o desenho e a estrutura daquilo que conhecemos hoje como violão clássico (ou espanhol, ou flamenco). O desenho da caixa e toda a estrutura interna, com diversos filetes de madeira que conferem apoio ao tampo da caixa e seus nuances foram pensados com um só objetivo: amplificar o som produzido pela vibração das cordas.


O violão folk, ou violão americano tem como diferenças básicas as cordas de aço (ao invés das de náilon) e um desenho mais bojudo, gorducho na parte de trás e reto, não tem a forma suave e feminina do violão de Torres, seu desenho é feito para ressaltar os graves, ainda que o uso das cordas de aço confiram um timbre mais estridente aos tons agudos.


Tanto numa forma quanto noutra, o instrumenento parecia destinado a soar sozinho ou com companhia muito seleta, voz, percussão suave ou qualquer coisa pouco barulhenta, por um motivo simples: seu som é baixo e fica difícil ouvir um violão numa orquestra (Rodrigo com seu Concierto de Aranjuez foi teimoso e conseguiu um resultado magnífico). E aqui então entra em cena o elemento fundamental na história do rock e por conseguinte na história de toda a música popular produzida na segunda métade do século XX: o captador magnético.

Antes de sua invenção, um dispositivo engenhoso de amplificação do som de uma guitarra (acústica, totalmente) foi concebido para as chamadas guitarras ressonantes, das quais a National Guitar e a Dobro (Dopyera Brothers) são as mais conhecidas. A National Guitar é um violão feito de aço enquanto que o Dobro é de madeira com uma peça central metálica sobre o topo da caixa. O princípio de funcionamento das duas é o mesmo: a vibração das cordas é transmitida pela ponte a um cone interno de metal (ver figura abaixo, sem a tampa nem as cordas) que funciona como um alto-falante, amplificando o som. O disco dos Dire Straits de '86 popularizou sua imagem, ainda que não tenha popularizado seu som, infelizmente.

Este tipo de instrumento tem um parente brasileiro que é a chamada viola dinâmica. Este instrumento, ao contrário da National/Dobro tem 10 cordas (5 pares de cordas oitavadas) como uma viola caipira e é típica dos cantadores de rua nordestinos. Helena Meirelles, a falecida violeira do Pantanal costumava tocar uma destas (foto abaixo).


Entretanto havia um clamor dos músicos por um instrumento de cordas que pudesse competir em volume com os instrumentos de sopro, típicos de qualquer banda de jazz e aí, não havia sistema de ressonância que desse conta: o processo de amplificação do som originado das cordas vibrando tinha que passar por outro canal...

ELETRICIDADE!... Como a voz humana pode ser amplificada usando-se um microfone acoplado a um amplificador, o de um violão também poderia... O uso do microfone no caso do violão limitava um pouco (muito!) a movimentação do músico e assim nasceu o captador. O captador é um conjunto de imãs (um para cada corda do instrumento) imantados por uma bobina. A idéia de seu funcionamento é simples: esses imãs geram, cada um, um campo magnético. A corda vibrando distorce o campo magnético gerado pelo seu imã correspondente, e assim o som está "captado", sendo desta forma transmitido elétricamente para o amplificador, e aí meu caro, quem manda é o botãzinho: pimba! entra em cena (na década de 30) a guitarra elétrica!

As primeiras guitarras elétricas eram do modelo havaiano, o que hoje é conhecido como lap steel e é tocada deitada sobre o colo com a mão que normalmente executa os acordes (a esquerda para os destros) segurando uma barra metálica que faz deslizar suavemente sobre as cordas enquanto a outra mão dedilha as cordas. A Rickenbacker Frying Pan é conhecida como a primeira guitarra elétrica construída. Curiosamente o modelo havaiano foi muito popular nos Estados Unidos nesta época, mais do que a guitarra que conhecemos hoje.

No princípio as guitarras elétricas eram pouco mais que um violão equipados com um captador elétrico, mas foram evoluindo ao longo dos anos e ao guitarrista Les Paul é creditada a invenção da guitarra de corpo sólido, uma vez que esta era, até então, um misto de acústica com elétrica, e a idéia de Les Paul era criar uma guitarra que fosse estritamente elétrica, sem caixa de ressonância nenhuma. Ele levou (em 1941) o protótipo chamado "Log" para a Gibson, que já era nessa época mega-fabricante de violões e guitarras.


Por incrível que pareça, a Gibson não se interessou! E se hoje já estamos carecas de ver o modelo Gibson Les Paul (cráááássssssico!, acima) isso deve-se a um conjunto inusitado de fatores. Em 1947, um músico de country chamado Merle Travis encomendou ao luthier Paul Bigsby uma guitarra de corpo sólido e em 1950 um técnico em eletrônica que consertava rádios chamado Leo Fender aliado ao projetista George Fullerton estabelecem outro marco na história da guitarra: a produção em série (até então as guitarras eram produzidas artesanalmente). Nascia a Fender Broadcaster (hoje conhecida como Telecaster, a guitarra mais linda do planeta em todos os tempos, penso eu, confira abaixo) e uma das marcas mais famosas do mundo ao lado da Gibson (que depois dessa, saiu correndo atrás de Les Paul e tratou de industrializar o modelo clássico que leva seu nome até hoje).


Daí pra frente o rock se esbaldou e a música do século XX nunca mais foi a mesma. O formato básico baixo, guitarra e bateria foi abraçado pelos jovens dos anos 50, levado em frente nos anos 60 e está aí até hoje.

Graças à eletricidade.
[M]