quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Cura para a dor

É possível ocupar o mesmo volume de uma banda de rock'n'roll (ou rock, simplesmente) sem ser uma banda de rock? A resposta imediata é não. Huuumm, mas vamos pensar um pouco, aquelas sinfonias pesadas de Beethoven (a abertura da 5a. por exemplo, é puro volume), ou mesmo Carl Orff com sua Carmina Burana, ou ainda Liszt com a sinfonia para a Divina Comédia de Dante nos lembram: sim!

Tudo bem, covardia comparar o som de uma banda de 4 ou 5 músicos com o de uma orquestra inteira é covardia... Daí a necessidade de eletrificar: corda ferida, vibração captada e devidamente amplificada... Essa é a fórmula do rock'n'roll e viva Thomas Edison!!!

Mas, vezes há que se pregam peças, aqui não se sabe se é o rock pregando a peça ou ele mesmo que está sendo pregado por uma pequena peça: um power trio inusitado radicado em Cambridge, uma cidadezinha universitária próxima de Boston, no estado americano de Massachusetts. Pois este pessoal resolveu que é possível fazer rock'n'roll sem guitarra, até aí tudo bem, os punks coseguiram fazer rock'n'roll sem música... Mark Sandman, um sujeito que "virou músico" já beirando os 40 anos, depois de ter rodado o mundo dirigindo taxis, trabalhando em navios e até na construção civil, levava diversos projetos musicais paralelos, mas o que decolou mesmo foi um trio que agregava, além dele, tocando um baixo rústico de duas cordas, feito em casa por ele mesmo, o baterista (de Jazz? provavelmente...) Jerome Deupree e o saxofonista Dana Colley (e... bem, é difcíl desassociar o saxofone do Jazz, não é verdade?), que costuma tocar na banda, um sax barítono, extremamente grave, muitas vezes dobrado nas gravações. O nome: Morphine. O que chama de imeditao a atenção é o fato de que trata-se de uma banda sem guitarristas, ainda que eventualmente Mark Sandman acrescentasse uma guitarra aqui ou ali.

Pra começar o rol de esquisitices que cerca o Morphine, meu primeiro contato com seu som foi uma fita K7 gravada pela (então) minha namorada, que conheceu este som em Londrina, numa de suas muitas excursões a serviço do aumento do potencial hidrelétrico nacional. Hoje a namorada é minha mulher e som do power trio de Cambridge é um dos nossos favoritos.

E o som do Morphine é grave, soturno, escuro, misterioso e pesado. É único. Na forma, ao menos, não há, não houve, nem haverá outro igual. O disco de estréia saiu em 1992: Good. Uma linda capa colorida não diz o que vem dentro da bolacha. A faixa título que abre o disco é o melhor cartão de visitas da banda, O riff de baixo acompanhado melodicamente pelo sax e uma bateria viajante definem o rock'n'roll estilo Morphine. Aliás o disco todo é a cara da banda (ou seja: de Mark Sandman, que assina todas as composições e que é, naturalmente, a cabeça do Morphine).

Good traz uma das (muitas) musas de Mark Sandman, geralmente figuras difíceis, (bastante) imperfeitas, muitas vezes autoritárias, como Claire. E mesmo cercado por esse tipo de mulher, ele declara seu amor de forma intensa como em I can tell you taste like the sky cause you look like rain, um lindo e lento blues levado com o auxílio de um órgão que ele mesmo executa.
Outros elementos importantes e que se tornariam frequentes nos discos do Morphine é o amor pela noite, pela boemia, por viver intensamente, aqui expressada em Do not go quietly unto your grave; e a urgência (muitas vezes bem-humorada) em se fazer entender, como em You speak my language, uma das minhas favoritas do repertório da banda, onde Mr. Sandman toca um riff pesado de guitarra, para expressar melhor seu desespero em tentar ser verbalmente (pelo menos!) compreendido.

Voltando à carga no ano seguinte com Billy Conway na bateria (que tem uma pegada mais rítmica porém menos diversificada que Jerome, afastado para tratar de problemas de saúde, mas que voltaria em 2000, tocando junto com Billy), o trio retorna com Cure for Pain, considerado por muitos como o seu melhor trabalho. De fato é um disco mais diversificado tanto ritmica, quanto melodicamente que o anterior, e alguns elementos novos aparecem aqui. Um solo de wah-wah sax em All Wrong; uma linda balada folk levada ao violão por Mark chamada In spite of me, que é quase um pedido de desculpas; um leve erotismo, extremamente peculiar em Thursday; uma levada que lembra bluegrass em Mary won't you call my name; outra linda balada com solo de órgão, a psicodelicamente soturna Let's take a trip together; e a faixa título onde declara com seu típico bom-humor: Someday there'll be a cure for pain... that's the da-a-ay... I throw my drugs away!

Os próximo discos, Yes, de 1995, e Like Swimming, de 1997 seguem na mesma toada: duas obras magníficas repletas de bom-humor (Sharks em Yes, e French Fries w/ Pepper em LS), amor e erotismo. As cantadas de Mark Sandman são do tipo... you penetrate my radar, you drop a bomb in my backyard (de Radar, faixa de '95), ou Don't worry, I'm not looking at you... Gourgeous! and dressed in blue (de Whisper, também de '95): nada óbvias.

Poderíamos até definir novos estilos... por exemplo: Morphine and roll (Honey White de '95 e I know you de '97); Rock and Morphine (Potion e 11 O'clock , ambas de '97); e o Heavy Morphine Metal de '95, True Love, que faria o Black Sabbath tremer de medo. Em Potion o ritmo compassado é acompanhado por uma atmosfera dada pelo órgão de MS, que canta quase falando, suplicando: give me the potion... to make me love you... give me the potion... to make me care... Em cada grupo de reticências repousa a intervenção rítmica da banda, um acorde, uma única batida, como se exigisse a poção mágica para o cantor.


A obra-prima viria em 2000... The Night. Diferente do MS atordoado, desesperado que, cantou, tocou e produziu os quatro álbuns anteriores, aqui temos um homem que está em paz consigo, que encontrou seu amor, está feliz e olhando para sua própria vida sob um viés mais otimista, mais repleto de beleza.

Além de arranjos mais bem elaborados, com a presença de cordas, coros femininos e maior presença de instrumentos alheios ao trio original, sax, baixo e batera(que aparecem de maneira suave, diga-se: MS está apaixonado mas não deixa de ser completamente o que sempre foi, assim, ainda é um disco com a marca registrada do Morphine, como por exemplo em Top floor, bottom buzzer ou em A good woman is hard to find).

Diversidade rítmica e melódica que só se encontra de maneira parecida em Cure for Pain, seu segundo disco, também é marca registrada aqui. Mark Sandman canta, entregue I'm yours... and you're mine! E em Rope on fire, tons do oriente e uma orquestração mais suave dão todas as pistas de um homem apaixonado, em busca da beleza, ou ainda: imerso na beleza desta experiência. Mas nenhum sinal é tão claro quanto a lindíssima faixa-título que abre o disco: You're the night, Lilah. A little girl lost in the woods. You're a folk tale, the unexplainable... You're a bedtime story. The one that keeps the curtains closed. I hope you're waiting for me cause I can't make it on my own.

Lilah é a noite, até então a única paixão de Mark Sandman. A noite e Lilah se confundem, elas são a mesma coisa, a síntese do seu amor e o sinal de seu encontro com a beleza que a vida pode proporcionar a quem não abre mão de viver suas paixões.

Take me with you when you go now. Don't leave me alone. I can't live without you. Take me with you, take me with you when you go
, canta Mark fechando o disco. Ironicamente Mark foi levado. No palco, tocando na Itália com seu Morphine, o coração foi pequeno para tão intensa experiência e entrou em colapso. No compasso do seu slide bass de duas cordas, na batida de Billy na bateria e com os sons exuberantes de Dana Colley. Mark Sandman se foi, mas seus humores, paixões, sandices e amores continuam entre nós. Amém.

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